O ARROLAMENTO DE BENS E A RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA

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É comum que a Receita Federal do Brasil autue a pessoa jurídica cobrando dela tributos supostamente devidos, inclusive acrescidos de multa de 75%, por suspeita de atos fraudulentos para diminuir ilicitamente a dívida tributária.

Além disso, o fisco muitas vezes surpreende os membros do corpo diretivo da empresa, ao incluí-los como solidariamente responsáveis pelo pagamento dos tributos cobrados na autuação, de acordo com o artigo 135, inciso III, do Código Tributário Nacional (CTN).

Nesses casos, é comum que o fisco arrole os bens e direitos dos dirigentes para pressioná-los, com base na acusação fiscal relacionada à pessoa jurídica.

Ocorre que a pessoa jurídica pode ter patrimônio conhecido em valor superior aos débitos tributários que lhe são cobrados, mas não ter seus bens e direitos arrolados.

Pode muito bem possuir patrimônio conhecido em valor superior a seus débitos tributários e não ter contra ela nenhum Termo de Arrolamento de Bens e Direitos.

Nesses casos, o corpo diretivo pode interpor recurso hierárquico muitas vezes indeferido, baseando-se no artigo 64 da Lei 9.532/97, que estabelece a hipótese de arrolamento quando o valor do crédito cobrado superar 30% do patrimônio conhecido. Nessa situação, cada um dos dirigentes é considerado isoladamente e pode ter patrimônio conhecido inferior ao limite legal.

O patrimônio conhecido pode superar o valor da própria cobrança e a empresa ter solidez econômico-financeira plenamente conhecida pelo Fisco.

Em muitos casos, a hipótese do artigo 64 da Lei 9.532/97, capaz de arrolar bens e direitos dos dirigentes, não se aplica. O patrimônio conhecido dos indicados nas autuações pode superar em muito o valor da própria cobrança.

No entanto, mesmo em caso de arrolamento, os dirigentes podem ter dificuldades para  dispor dos seus patrimônios. Além disso, eventual negociação desses bens com terceiros pode ser prejudicada pelo receio de evicção em decorrência do arrolamento.

Nesses casos, é preciso afastar qualquer ato do fisco que venha a embaraçar o direito dos dirigentes de dispor livremente de seus bens ou pretenda responsabilizar futuros adquirentes devido, única e exclusivamente, ao arrolamento de bens e direitos em questão.

O arrolamento de bens e direitos no âmbito da administração tributária

O arrolamento de bens e direitos no âmbito da administração tributária surgiu com um pacote de medidas destinadas a reduzir o déficit público. O governo federal, na época, editou a Medida Provisória 1.602/97 (MP 1.602/97), que introduziu diversas normas para aumentar a arrecadação e aproveitou também para aprovar novos instrumentos de modernização e aperfeiçoamento da legislação tributária.

O artigo 59 da MP 1.602/97 trata expressamente do arrolamento de bens e direitos como medida de proteção ao crédito tributário:

MEDIDAS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

Art. 59. A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido.

[…]

Essa medida provisória foi convertida na Lei 9.532/97 e, atualmente, o arrolamento tem a seguinte redação:

Art. 64. A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido.

  • 1.º Se o crédito tributário for formalizado contra pessoa física, no arrolamento devem ser identificados, inclusive, os bens e direitos em nome do cônjuge, não gravados com a cláusula de incomunicabilidade.
  • 2.º Na falta de outros elementos indicativos, considera-se patrimônio conhecido, o valor constante da última declaração de rendimentos apresentada.
  • 3.º A partir da data da notificação do ato de arrolamento, mediante entrega de cópia do respectivo termo, o proprietário dos bens e direitos arrolados, ao transferi-los, aliená-los ou onerá-los, deve comunicar o fato à unidade do órgão fazendário que jurisdiciona o domicílio tributário do sujeito passivo.
  • 4.º A alienação, oneração ou transferência, a qualquer título, dos bens e direitos arrolados, sem o cumprimento da formalidade prevista no parágrafo anterior, autoriza o requerimento de medida cautelar fiscal contra o sujeito passivo.

[…]

  • 7.º O disposto neste artigo só se aplica a soma de créditos de valor superior a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

[…]

  • 10. Fica o Poder Executivo autorizado a aumentar ou restabelecer o limite de que trata o § 7.º deste artigo.

Art. 64-A. O arrolamento de que trata o art. 64 recairá sobre bens e direitos suscetíveis de registro público, com prioridade aos imóveis, e em valor suficiente para cobrir o montante do crédito tributário de responsabilidade do sujeito passivo.

Parágrafo único. O arrolamento somente poderá alcançar outros bens e direitos para fins de complementar o valor referido no caput.

Como se vê pelos dispositivos transcritos acima, o arrolamento de bens e direitos somente é possível se a soma dos créditos tributários cobrados do contribuinte superar 30% do seu patrimônio conhecido. E apenas se a soma dos créditos for maior que R$ 2 milhões, como estabelece o Decreto 7.573/11.

De acordo com o § 3º do artigo 64 da Lei 9.532/97, o contribuinte pode livremente dispor de seu patrimônio, alienando-o a quem bem entender, sem que seja necessária a concordância prévia do fisco. Há apenas a obrigação de, posteriormente, informar ao fisco a disposição.

Assim, está claro que o arrolamento de bens e direitos não configura um ato de indisponibilidade patrimonial nem se constitui em garantia do crédito tributário.

Trata-se apenas de medida acautelatória de acompanhamento da alteração patrimonial do contribuinte, quando a situação fática descrita na norma justificar a atenção especial do fisco.

Ou seja, não é qualquer comprometimento patrimonial. Justifica-se a especial atenção do fisco apenas quando o valor cobrado for superior a R$ 2 milhões e representar mais de 30% do valor do patrimônio conhecido do contribuinte.

Esse acompanhamento especial da alteração patrimonial do contribuinte é de extrema relevância para a administração tributária.

O procedimento permite tomar conhecimento imediato de eventual dilapidação patrimonial que justifique a adoção das medidas preventivas, visando, aí sim, a constituição de garantia da satisfação do crédito tributário cobrado.

O legislador não pretendeu, com a figura do arrolamento administrativo, impor à administração tributária a mobilização da máquina pública despropositadamente.

O que justifica a atenção redobrada é a possibilidade de o contribuinte vir a apresentar, no futuro, risco de insuficiência patrimonial que venha a prejudicar a satisfação do crédito tributário.

Não se trata de risco já presente, mas, sim, potencial. Um risco que é medido, objetivamente, pelo montante do valor dos créditos tributários que comprometa mais de 30% do patrimônio conhecido do contribuinte.

Nesses casos, em que a situação patrimonial do devedor justificar atenção especial, o legislador entendeu que se trata de medida de proteção ao crédito tributário.

Tanto é assim que, no processo legislativo de conversão da MP 1.602/97, a proposta de supressão de um congressista foi vetada sob o seguinte argumento: Os artigos 59 a 61 constituem salutares medidas de proteção ao crédito tributário. Têm a nossa aprovação.”[1]

Se não houver risco potencial futuro de insuficiência patrimonial do contribuinte, portanto, não há hipótese material de incidência da norma jurídica que autoriza o fisco, por vontade própria, a fazer o registro do arrolamento de bens e direitos.

Ou seja, inexistindo hipótese de incidência da norma jurídica, o ato de arrolamento praticado pela administração pública é ilegal e abusivo.

STJ confirma que arrolamento cautelar de bens é legal

Muitos contribuintes não se conformam com o arrolamento e alegam inconstitucionalidade e ilegalidade, sob o argumento de que estariam se submetendo a uma constrição patrimonial supostamente com efeito de garantia.

Essa tese foi completamente rechaçada pelos tribunais do país, em jurisprudência confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), como no julgamento do AgRg nos EDcl no REsp 1.190.872/RJ:

TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. ARROLAMENTO DE BENS. LEI N. 9.532/97. ACÓRDÃO A QUO. HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

1. Cinge-se a questão em verificar a legalidade de o Fisco proceder ao arrolamento de bens do sujeito passivo para garantia do crédito fiscal, antes de sua constituição definitiva; ou seja, antes do julgamento de todos os recursos administrativos interpostos em face do lançamento.

2. O arrolamento de bens disciplinado pelo art. 64 da Lei n. 9.532 de 1997 revela-se por meio de um procedimento administrativo, no qual o ente estatal efetua levantamento de bens dos contribuintes, arrolando-os sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido e superar R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Finalizado o arrolamento, providencia-se o registro nos órgãos próprios, para efeitos de dar publicidade.

3. Não viola o art. 198 do CTN, pois o arrolamento em exame almeja, em último ratio, a execução do crédito fiscal, bem como a proteção de terceiros, inexistindo, portanto, suposta violação do direito de propriedade, do princípio da ampla defesa e do devido processo legal.

4. A medida acautelatória, sob a ótica do interesse público, tem o intuito de evitar o despojamento patrimonial indevido, por parte de contribuintes.

5. Precedentes: (AgRg no REsp 726.339/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 19.11.2009, REsp 770.863/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 1º.3.2007, DJ 22.3.2007)

Agravo regimental improvido.

Os dirigentes podem discordar do entendimento estabelecido na jurisprudência, pois nesses casos, a autoridade faz o arrolamento de bens sem que haja materialidade fática para amparar a aplicação da norma jurídica.

A norma contida no artigo 64 da Lei 9.532/97 não altera as regras relativas à responsabilidade patrimonial do contribuinte. Seu conteúdo jurídico decorre do princípio da responsabilidade patrimonial do devedor (artigo 789 do Código de Processo Civil – CPC), segundo a qual o devedor responde pelos seus débitos na integralidade do seu patrimônio.

O efeito da responsabilidade patrimonial do devedor é delimitar a responsabilidade à integralidade do seu patrimônio – é o que dá sentido e eficácia à norma jurídica.

O objetivo da norma, portanto, é assegurar a responsabilidade patrimonial do devedor.

Essa interpretação teleológica da norma, combinada com a teoria dos limites objetivos e subjetivos da responsabilidade do devedor, foi claramente incorporada pela jurisprudência do STJ, como assentou o ministro Luiz Fux em seu voto condutor do julgamento do REsp 689.472/SE: “A finalidade da referida medida acautelatória é conferir maior garantia aos créditos tributários da União, assegurando a futura excussão de bens e direitos do sujeito passivo suficientes à satisfação do débito fiscal.”[2] (grifos nossos).

Não é por outro motivo que a Instrução Normativa 2.091/22 da Receita Federal do Brasil (IN RFB 2.091/22), em seu artigo 2.º, § 4.º, dispôs que, na hipótese de responsabilidade subsidiária prevista no artigo 134 do Código Tributário Nacional (CTN), os bens e direitos do responsável solidário não poderão ser objeto de arrolamento, exceto se insuficientes os bens do devedor”.

Isso quer dizer que o fisco reconheceu que o arrolamento de bens e direitos tem a mesma origem ontológica do princípio da responsabilidade patrimonial.

O § 4.º do artigo 2.º da IN RFB 2.091/22 afasta materialmente a aplicação do artigo 64 da Lei 9.532/97 aos responsáveis subsidiários, quando o devedor principal tiver patrimônio suficiente para satisfazer o crédito tributário.

A norma regulamentar não trouxe nenhuma inovação ao texto da lei nem criou direito novo. Por mais que seja óbvia a impossibilidade jurídica de arrolar patrimônio de responsável subsidiário sem antes considerar o patrimônio do devedor principal – a quem, em primeiro lugar, deve-se aplicar a cobrança –, a ausência de disposição expressa na lei em alguns casos impõe regulamentações para eliminar ambiguidades e atos sem juridicidade.

A IN RFB 2.091/22, porém, somente disciplinou os casos de responsabilidade subsidiária. Não contemplou regulamentação para os casos de responsabilidade solidária prevista no artigo 135 do CTN.

Como resultado, por mais que seja óbvia a conclusão de que o arrolamento de bens e direitos, nos casos de responsabilidade solidária, deve levar em conta o total do patrimônio conhecido dos codevedores, sem benefício de ordem, essa ordem não pode ser determinada pela autoridade fiscal. Ao impor isso, o fisco acaba praticando ato coator e ilegal.

Os dirigentes podem, inclusive, até não concordar com a imputação da responsabilidade solidária que for aplicada ilicitamente a eles na autuação.

A responsabilidade solidária

Antes de analisar os desdobramentos da responsabilidade solidária no âmbito tributário, é relevante compreender as origens do instituto, especialmente a partir do princípio da responsabilidade patrimonial e das lições do direito civil.

O artigo 789 do Código de Processo Civil positiva o chamado princípio da responsabilidade patrimonial:

Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.

Esse dispositivo estabelece os limites patrimoniais da responsabilidade do devedor. Em primeiro lugar, salvo hipóteses específicas, terceiros não podem ser responsabilizados por obrigações do devedor.

Além disso, a legislação estabelece bens específicos que não poderão ser considerados como “patrimônio” para fins de satisfação de obrigações, como, por exemplo, os chamados bens de família.

Apesar da regra geral de limitação patrimonial, há situações em que os limites patrimoniais são estendidos em benefício do credor.

É o caso da solidariedade passiva, que, no direito obrigacional, configura-se nas hipóteses em que mais de um devedor se obriga ao cumprimento da integralidade da obrigação.

Como se depreende da leitura do artigo 275 do Código Civil, os codevedores respondem com todo seu patrimônio pela dívida. A limitação do patrimônio não é feita com base na parte que cabe a cada um dos devedores:

Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.

Ou seja, conforme Arnoldo Wald, “a solidariedade passiva, multiplicando o número de patrimônios que respondem pela dívida, aumenta a segurança do credor, sendo os coobrigados, numa imagem já consagrada pela doutrina, ‘bois atrelados ao mesmo carro'”. (grifos nossos).

Washington de Barros Monteiro também afirma que “Sua função primordial é a produção de segurança”.[4]

Assim como Miguel Maria de Serpa Lopes diz que […] na solidariedade passiva, unificam-se os devedores, sendo facultado ao credor exigir de qualquer deles o cumprimento integral da obrigação. Daí a importância da solidariedade passiva, por se tratar de uma forma de obrigação que muito contribui para maior segurança do crédito […]”.

Ao credor é dado o direito de escolher se direcionará os esforços de cobrança contra apenas um, vários, ou todos os devedores:

Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.

Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores.

O devedor que cumprir totalmente a obrigação ou o fizer com um valor acima do que representa o seu quinhão terá direito a ser reembolsado pelos demais codevedores, como determina o Código Civil:

Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.

Mas o direito de reembolso não pode ser oposto ao credor. Isto é, o devedor não pode alegar que é responsável por apenas uma fração do débito com o objetivo de limitar o pagamento à sua parte e se eximir do pagamento do valor integral da dívida. Essa compensação deve ser buscada posteriormente com os demais codevedores.

A solidariedade funciona como exceção ao princípio da divisibilidade do débito entre os seus diversos titulares.[6]

Miguel Maria de Serpa Lopes ensina que as obrigações solidárias (assim como as obrigações indivisíveis) “[…] representam exceção à regra geral de que uma obrigação, tendo por titulares mais de um sujeito ativo ou passivo, se reputa dividida, quer no sentido passivo, quer no ativo, entre tantas partes quantas forem os credores ou devedores. Por conseguinte, indivisibilidade e solidariedade constituem uma exceção…”.[7]

Essas são, portanto, as vantagens que a solidariedade passiva confere ao credor no âmbito cível:

  • há vários patrimônios somados para fazer frente ao débito, aumentando a probabilidade de satisfação da obrigação; e
  • facilitação da cobrança, já que é dado ao credor o direito de escolher contra quem direcionará a cobrança para satisfação integral da obrigação. O codevedor não pode, individualmente, pretender pagar apenas sua fração do débito.

Esse entendimento é corroborado pela jurisprudência, como no julgado do Tribunal Regional Federal (TRF) da 5.ª Região, abaixo mencionado:

[…] é facultado ao credor exigir e receber de um ou de alguns dos devedores a dívida comum. O devedor que satisfez a dívida por inteiro, entretanto, tem direito a exigir do codevedor a sua quota, podendo fazê-lo ajuizando a respectiva ação de regresso. É o que previu o art. 283, CC.

[…]

o devedor que foi cobrado não pode se eximir de adimplir a obrigação alegando a existência de codevedores. Deverá, assim, proceder ao pagamento da dívida em sua integralidade, remanescendo para si o direito de exigir do outro devedor o que lhe é devido.[8]

Assim, o principal efeito da solidariedade passiva consiste na unificação da totalidade dos patrimônios dos codevedores frente ao credor, fazendo com que todos se obriguem ao pagamento integral da dívida.

Nas palavras de Miguel Maria de Serpa Lopes, “A solidariedade importa no tratamento unitário da pluralidade.”

Na mesma linha se dá o entendimento de Roberto de Ruggiero, professor da Universidade Real de Roma. Ele defende que, na solidariedade, “verifica-se uma verdadeira e própria unidade da obrigação, não obstante a pluralidade dos sujeitos”.[9]

Em resumo, a responsabilidade solidária consolida no polo passivo da obrigação vários devedores, cujos patrimônios são considerados em conjunto para satisfação do débito.

Em outras palavras, embora existam vários devedores, o débito é indivisível, o que aumenta a probabilidade de satisfação da obrigação e torna mais segura a situação jurídica do credor.

CTN prevê que mais de um sujeito pode ser responsabilizado pelo crédito tributário

No CTN, o legislador também previu hipóteses específicas em que mais de um sujeito pode ser responsabilizado pelo crédito tributário. No caso, a autoridade fiscal muitas vezes lavra auto de infração contra pessoa jurídica e a vários de seus sócios e administradores, com base no artigo 135, III:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

[…]

III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

O  artigo 135, III do CTN, portanto, estabelece a responsabilidade tributária solidária a indivíduos com poder gerencial, que são incluídos junto com a pessoa jurídica no polo passivo da obrigação tributária.

Hugo de Brito Machado explica que “A presença do responsável, daquele a quem é atribuída a responsabilidade tributária nos termos do art. 135 do Código Tributário Nacional, não exclui a presença do contribuinte”.[10]

Um auditor fiscal pode acabar tendo a mesma interpretação:

[…] o art. 135 é hipótese de responsabilidade tributária por transferência dolosa, com solidariedade entre a pessoa jurídica (contribuinte originária) e os seus administradores…

[…]

Como a pessoa jurídica continua sendo responsável pelo crédito tributário, na condição de contribuinte, há solidariedade entre ela e os administradores, sem benefício de ordem

A jurisprudência do STJ seguiu exatamente esse sentido, como exposto no acórdão abaixo:

[…]

3. Os bens do sócio de uma pessoa jurídica comercial não respondem, em caráter solidário, por dívidas fiscais assumidas pela sociedade. A responsabilidade tributária imposta por sócio-gerente, administrador, diretor ou equivalente só se caracteriza quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova infração à lei praticada pelo dirigente, e não apenas quando ele simplesmente exercia a gerência da empresa à época dos fatos geradores.

4. Em qualquer espécie de sociedade comercial, é o patrimônio social que responde sempre e integralmente pelas dívidas sociais. Os diretores não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do estatuto ou lei (art. 158, I e II, da Lei nº 6.404/76).

[…]

7. Matéria que teve sua uniformização efetuada pela egrégia 1ª Seção desta Corte nos EREsp nº 260107/RS, unânime, DJ de 19/04/2004.[11] (grifos nossos).

Responsabilidade solidária tem efeito semelhante nas esferas tributária e civil

Assim como no âmbito cível, o principal efeito da solidariedade na esfera tributária consiste em tornar todos os devedores coobrigados pela satisfação do débito, sem benefício de ordem. Novamente, há uma unicidade da relação obrigacional.

As semelhanças entre a responsabilidade solidária na esfera tributária e a solidariedade passiva do direito civil não são frutos de simples comparação teórica. Elas decorrem diretamente de lei, como estabelece o artigo 4º, § 2º da Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80):

  • 2º – À Dívida Ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as normas relativas à responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial.

A unicidade do polo passivo da obrigação tributária nos casos de responsabilidade solidária também fica clara com a leitura do CTN, cujo artigo 125 dispõe o seguinte:

Art. 125. Salvo disposição de lei em contrário, são os seguintes os efeitos da solidariedade:

I – o pagamento efetuado por um dos obrigados aproveita aos demais;

II – a isenção ou remissão de crédito exonera todos os obrigados, salvo se outorgada pessoalmente a um deles, subsistindo, nesse caso, a solidariedade quanto aos demais pelo saldo;

III – a interrupção da prescrição, em favor ou contra um dos obrigados, favorece ou prejudica aos demais.

Ou seja, a unicidade do vínculo foi determinada pelo próprio legislador tributário, que previu que certas situações específicas que beneficiem um dos devedores serão também aproveitadas pelos demais codevedores.

Sobre a unicidade do vínculo obrigacional em caso de solidariedade, o STJ também já se manifestou: “Acerca da obrigação tributária solidária, forçoso ressaltar que é de sua essência a unicidade da relação jurídica tributária em seu polo passivo…”.[12]

Isso significa que, como no direito civil, o limite da responsabilidade dos devedores solidários toma como referência a totalidade do patrimônio dos codevedores. Não cabe, assim, considerar os patrimônios de cada devedor isoladamente, mas todos os patrimônios em conjunto. Afinal, esse é o grande benefício que a responsabilidade solidária traz para o credor: a soma dos patrimônios dos codevedores e a decorrente indivisibilidade do débito.

No direito privado, o credor pode escolher contra quem demandar, assim como pode demandar contra todos de uma só vez. Mas se demandar contra todos em processos diferentes, a própria norma processual exige a reunião das ações para evitar decisões contraditórias (como dispõe o artigo 55, § 1.º, do CPC).

No direito público, especialmente em matéria tributária, a solidariedade passiva não confere a mesma faculdade ao fisco.

O direito tributário é regido pelo princípio da estrita legalidade (artigo 150 da Constituição Federal). Para fazer a cobrança, a autoridade competente deve direcionar seus esforços contra todas as partes obrigadas por lei à satisfação do crédito tributário.

Além disso, segundo o princípio da indisponibilidade do interesse público, “é vedado à autoridade administrativa deixar de tomar providências ou retardar providências que são relevantes ao atendimento do interesse público, em virtude de qualquer outro motivo”.[13]

Some-se a isso os princípios contidos no caput do artigo 37 da Constituição Federal, entre os quais se destacam legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.

Disso se conclui que a Administração Pública, e, mais especificamente o fisco, não pode dispor de bens e interesses livre e desmedidamente. Deve-se agir nos estritos limites legais e buscar sempre a satisfação dos princípios acima mencionados.

Isso significa que, ao realizar o ato tributário, se a autoridade acredita, por exemplo, que houve infração à lei ou excesso de poder por parte dos administradores da pessoa jurídica, ela deve lavrar a autuação e incluir os administradores como responsáveis solidários à empresa, sob pena de responsabilidade funcional.

Não cabe à autoridade fiscal decidir se cobrará o tributo que entende ser devido apenas da pessoa jurídica ou apenas dos seus administradores ou de parte deles, e assim por diante.

Além de encontrar amparo nos princípios e disposições gerais mencionados acima, essa interpretação é resultado direto do artigo 142 do CTN, que estabelece a vinculação da atividade de lançamento tributário:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

A Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80) também indica a obrigatoriedade de o fisco cobrar de todos os corresponsáveis:

Art. 2.º […]

[…]

  • 5.º – O Termo de Inscrição de Dívida Ativa deverá conter:

I – o nome do devedor, dos corresponsáveis e, sempre que conhecido, o domicílio ou residência de um e de outros;

Como explica Marcos Vinicius Neder:

“a autoridade administrativa, por ocasião da produção do auto de infração ou da notificação de lançamento, deve identificar aqueles que eventualmente possam e/ou devam responder pelo crédito tributário na condição de responsáveis (isso, por óbvio, se a responsabilidade não se conformar por conta de fatos supervenientes ao ato administrativo de lançamento…).

Ao impor a obrigatoriedade desse requisito na formação do ato de lançamento, o legislador quis assegurar que a pretensão fiscal externe de modo inequívoco o sujeito passivo contra o qual a Fazenda Pública buscará a satisfação da exação formalizada“.[14] (grifos nossos).

Essas formalidades que envolvem o ato de lançamento tributário limitam a alteração ou inclusão de outros devedores no polo passivo da obrigação tributária após o encerramento do processo administrativo em que se discute o respectivo lançamento. Humberto Theodoro Júnior explica que:

[…] se não houve procedimento administrativo contra o sócio, nem sequer se extraiu certidão de dívida ativa contra ele, não é possível desviar-se o rumo da execução da sociedade para a pessoa física do sócio não-solidário. Não fica, como é evidente, a Fazenda com o alvedrio de executar qualquer corresponsável, porquanto seu título executivo (Certidão) terá força contra os devedores perante os quais foi constituído. A certeza, sem a qual o título carece de exequibilidade, há de ser não só objetiva quanto subjetiva, isto é, há de dizer respeito tanto ao crédito tributário, como quanto aos que por ele respondem (devedor e co-responsáveis)”. (grifo nosso)

As modificações no polo passivo da obrigação tributária ficam autorizadas apenas nas situações em que a corresponsabilidade não é conhecida no momento da constituição do crédito tributário e vem à tona no decorrer do processo de conhecimento ou de execução. É o que ensina a procuradora da Fazenda Nacional Juliana F. Costa Araújo:

Importante salientar que se a responsabilidade destes terceiros não está configurada quando do ajuizamento do feito executivo, sendo que no decorrer do processo de execução tal responsabilidade vem à tona, tais dispositivos [refere-se a vários dispositivos, dentre os quais o 135 do CTN], sem sombra de dúvidas, conferem legitimidade para que haja o redirecionamento da cobrança do crédito.[16]

Esse entendimento é corroborado pelas cortes brasileiras, conforme atesta trecho do julgado abaixo:

3. Existem duas hipóteses nas quais podemos observar a participação dos sócios no polo passivo da execução fiscal. Na primeira hipótese, a execução fiscal é ajuizada diretamente em face da pessoa jurídica e do sócio-gerente que consta da CDA. Dada a presunção de veracidade que possui esse título executivo, o ônus da prova compete ao executado, que deverá demonstrar a ausência dos requisitos do art. 135, do CTN. Na segunda, a execução fiscal que, originalmente, fora ajuizada somente em face da pessoa jurídica, é redirecionada contra o sócio, que não consta da CDA. Nesse caso, cabe ao exequente provar a ocorrência de algum motivo que leve à desconsideração da personalidade jurídica da executada principal ou a prática de atos pelo sócio com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto (art. 135, do CTN), a fim de que se possa autorizar o redirecionamento em face de pessoa que não consta no título executivo[17] (grifo nosso)

Diante do exposto, não há dúvidas de que, caso tenha informações que levem a crer que existe solidariedade passiva, o fisco deve constituir o crédito incluindo todos os devedores solidários no polo passivo do obrigado. Uma vez constituído o crédito tributário contra vários devedores solidariamente, a cobrança será proposta contra todos eles.

Em relação a serem medidas legalmente vinculadas, trata-se da opção que melhor atende ao próprio interesse da Fazenda Pública, já que a soma dos patrimônios dos codevedores reforça a garantia de que o crédito tributário será quitado.

A cobrança direcionada contra todos os devedores solidários é reflexo direto dos princípios da indisponibilidade do interesse público, da impessoalidade, da eficiência, entre outros.

Nesse contexto, fica evidente que o patrimônio conjunto do devedor original (pessoa jurídica) deve ser considerado junto com o patrimônio dos demais devedores solidários (administradores). Algo diferente disso acarretaria prejuízo para o próprio interesse fazendário, cujo principal objetivo é aplicar corretamente a legislação tributária para garantir a arrecadação de recursos ao erário.

Como é sabido, interesse fazendário e interesse público não são necessariamente coincidentes. Porém, assumindo que a interpretação pretendida pelo fisco em determinado caso é, de fato, a que reflete o melhor ângulo da legislação tributária, pode-se, então, utilizar as expressões de modo aproximado.

Assim sendo, em caso de solidariedade passiva e para avaliar os parâmetros da Lei 9.532/97 que estabelecem o arrolamento administrativo de bens, o patrimônio dos devedores deve ser considerado em conjunto. Não há limites patrimoniais para satisfação do crédito tributário de acordo com o quinhão de cada devedor.

Conclusão

Partindo das colocações apresentadas, conclui-se que, quando o credor pretender cobrar crédito tributário a mais de um devedor, pautando-se na responsabilidade solidária, a aplicação de norma jurídica atrelada ao princípio da responsabilidade patrimonial deve levar em consideração os efeitos específicos da responsabilidade solidária.

Nesses casos, a interpretação das normas jurídicas impõe a análise conjunta da hipótese de incidência do artigo 64 da Lei 9.532/97 junto com o instituto da responsabilidade solidária previsto nos demais elementos disponíveis no direito.

Do contrário, se estará violando o artigo 110 do CTN, segundo o qual a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios.

É comum que o crédito nascido da relação jurídico-tributária entre fisco e contribuinte seja proporcional à capacidade contributiva desse mesmo contribuinte. Por exemplo, a renda do contribuinte faz nascer a obrigação de pagar tributo cuja expressão patrimonial seja proporcional à sua renda.

O mesmo não se pode dizer em relação ao terceiro responsável pelo pagamento do tributo, o que é comum nos casos em que se atribui à pessoa física a responsabilidade pelos tributos da pessoa jurídica.

Nesses casos, normalmente o patrimônio da pessoa física é muito inferior ao crédito tributário cobrado da pessoa jurídica – o patrimônio da pessoa física estaria comprometido em mais de 100% de tributos.

Assim, se o limite legal previsto no artigo 64 da Lei 9.532/97 não coincidir com o limite de todo o patrimônio dos codevedores considerados em sua universalidade, na maioria dos casos, todas as pessoas físicas incluídas como responsáveis solidárias terão seus respectivos patrimônios arrolados. A pessoa jurídica não sofre o mesmo arrolamento, porque seu patrimônio não estaria comprometido em mais de 30% dos débitos tributários cobrados.

Esse não foi o objetivo do legislador!

Como visto, a interpretação teleológica da norma contida no artigo 64 leva à conclusão de que o legislador objetivou garantir ao fisco o acompanhamento minucioso da variação patrimonial do contribuinte, quando houver risco potencial de despojamento patrimonial.

Esse risco potencial é medido pela ultrapassagem do limite de 30% de comprometimento patrimonial com débitos tributários.

Se o patrimônio do contribuinte estiver comprometido em mais de 30% com cobranças tributárias, a futura cobrança do crédito tributário estará amparada por patrimônio que precisa ser monitorado para avaliar a necessidade de adotar medidas acautelatórias de garantia e satisfação da totalidade do crédito tributário.

Caso a cobrança do crédito tributário esteja amparada por patrimônio maior que o correspondente a 30% de tributos, o arrolamento de bens e direitos não se justifica.

Ora, se, de um lado, para o credor (fisco), a cobrança estará amparada pela totalidade do patrimônio dos codevedores, que é o limite da responsabilidade patrimonial solidária, na mesma medida o arrolamento de bens e direitos deve considerar a mesma grandeza.

Em outras palavras, nos casos de responsabilidade solidária, o limite fixado pelo legislador (30% do patrimônio conhecido do devedor), passa a ser 30% do patrimônio conhecido de todos os codevedores.

A empresa pode acabar não sofrendo o arrolamento de bens e direitos e os dirigentes, tidos como supostos responsáveis, são os únicos codevedores a receber o Termo de Arrolamento de Bens e Direitos.

Isso porque, os tributos cobrados da empresa estão longe de superar os 30% do seu patrimônio, enquanto a cobrança imposta pelo fisco supera, em muito, 100% do patrimônio dos dirigentes.

Considerar individualmente o patrimônio da pessoa física tida como responsável tributário, para fins de incidência do artigo 64 da Lei 9.532/97, desvirtua por completo o princípio da responsabilidade patrimonial solidária.

Essa é a interpretação sistemática e teleológica que se impõe.

O arrolamento de bens e direitos determinado pela autoridade fiscal sem observar essas linhas de raciocínio é ato abusivo e contrário à lei e à Constituição. Não deve, portanto, ser aplicado, sob pena de contrariar o legítimo direito dos dirigentes de não terem seus bens e direitos arrolados.